Fulano” é o título de um conto do Machado de Assis sobre Fulano Beltrão, um sujeito pacato e reservado, até quando um amigo publica “coisas belas e exatas” sobre ele no Jornal do Commercio. Fulano acha interessante ver seu próprio perfil publicado e resolve “ajudar” o amigo, replicando o mesmo texto nos demais jornais da capital. Só para garantir a visibilidade.

Ao tomar gosto por esta coisa de mídia, Fulano passa a aproveitar cada oportunidade para publicação de novas notas, artigos elogiosos, publicidade de seus feitos. Com a exposição, ele muda seus hábitos, começa a frequentar rodas sociais, projeta casar a filha com algum fidalgo. Quando viúvo, importa um mausoléu em homenagem à memória da mulher – para colocá-lo em exposição, em plena praça pública. Virou “alguém” graças à imprensa, esta “grande invenção”, nas palavras do personagem.

Que Machado é um gênio, todo mundo sabe (até mesmo quem não o lê). Ele compreendeu a alma humana como poucos homens em todos os tempos e, ainda por cima, tinha talento sobrenatural para escrever histórias perenes e universais. Mas a visão de Machado também alcançava, de forma aguda e precisa, as transformações dos costumes pelos avanços das tecnologias, em especial, as de comunicação.

Escritório de telégrafo em ilustração antiga. Arte criada por Alphonse de Neuville, publicada em Le Tour du Monde, Paris, 1867.
Escritório de telégrafo em ilustração antiga. Arte criada por Alphonse de Neuville, publicada em Le Tour du Monde, Paris, 1867. (Photo by ANTONIO ABRIGNANI on 123RF)

Por exemplo, em um outro ensaio – sobre o advento do formato do jornal diário -, Machado mostra que tinha a perfeita noção do processo tecnológico de sua época e seu impacto na história, em plena transformação com a emergência do telégrafo e seus desdobramentos. Inserido na incipiente aldeia global, era um homem de seu tempo e dominava o conceito das novas tecnologias – trabalhou como tipógrafo, inclusive.

“Antecipando quase um século, Machado já sabia que o meio era a mensagem”

Em “Fulano”, Machado revela como a imprensa, uma das tecnologias emergentes, poderia transformar hábitos e reputações. Um sujeito tranquilo como Fulano Beltrão virou um homem público. A auto-publicação de seus feitos – mesmo que prosaicos – provocavam comentários na praça. Antecipando quase um século, Machado já sabia que o meio era a mensagem.

O conto “Fulano” eterniza a necessidade de auto-promoção, explícita em nosso tempo. Desconfio que nosso escritor não se surpreenderia, por exemplo, com o conceito dos 15 minutos de fama, de Andy Wahrol. Muito menos com a mecânica das redes sociais, onde o hábito de compartilhar experiências – como viajar, tomar banho ou fazer uma refeição – torna-se mais importante do que qualquer ato em si.


(Photo by Eaters Collective on Unsplash/Edited)

Não quero me alongar neste post, para não transformá-lo em um ensaio de teoria da comunicação (graças a Deus, é só um comentário). Mas quando li “Fulano”, ficou muito claro que o texto não é uma anedota, ou um “causo” pontual. É uma reflexão sobre a vaidade humana, potencializada pela mídia de qualquer época, que projeta uma imagem idealizada da realidade, inclusive através da auto-publicação – hábito global e irreversivelmente disseminado pelas mídias sociais, como o Facebook , Instagram ou Twitter.

A diferença entre a época de Fulano Beltrão e nosso tempo é apenas uma questão de escala. No século XIX, tínhamos a prensa; no século XXI, o digital. Naquela época, poucos tinham acesso. Agora, a internet está totalmente universalizada. Mas os objetivos continuam os mesmos. Tanto antigamente, quanto agora, queremos projetar esta imagem idealizada, e os meios de comunicação se tornam protagonistas na justificação de nossa existência.

E, sem fazer juízo de valor, esta dinâmica – agora no ritmo alucinante de bites e bytes – tem alterado profundamente as nossas vidas, nossas escolhas, visões de mundo e capacidade cognitiva. Não só no âmbito individual, mas sobretudo no coletivo, pois grande parte da humanidade experimenta, na veia, os inesperados caminhos de mais um ciclo da comunicação de massa.

Mais do que nunca, a realidade, por si só, não basta. É preciso idealizá-la, senão, não existimos o suficiente. Para garantir esta plenitude, nada mais potente do que esta mesma mídia – agora ubíqua, social, móvel e permanente – que catapulta nossa existência e, no limite, define o que somos: uma geração de “Fulanos Beltrões”.